23 anos ingénuos, passados como se aos 18 fosse idade de casar, aos 20, de ser mãe e aos 23, idade de ficar por casa na lida doméstica.
Já não as julgava assim. Desta raça de campo, em saias de pregas e filhos com bochechas vermelhas das correrias pelos montes, do ar puro do campo, na liberdade rara dos dias de hoje... porém os tempos são outros e em tempos de crise não se pode escolher... Os 23 anos de vida, parecendo 40, estão agora à minha frente, num qualquer lugar da cidade grande, a trabalhar para sustentar a família. Aos 18 casou, aos 20 não foi mãe porque os filhos já não se alimentam de ar e de vento, nem sequer das carnes da matança do porco ou das galinhas de campo... Hoje há a gripe das aves, as toxinas nos porcos, a ASAE... e o ar? Esse tornou-se cada vez menos puro e mais cinzento...
Por isso mesmo ela vem todos os dias na camioneta madrugadora e velha para mais um dia de trabalho... ingénua, inocente, calma e com cara de santa, imaculada e sem sombra sequer, de sombra para os olhos ou brilho nos lábios. Penica o pão-de-ló da sogra, cozido em forno de pedra e bebe café como eu bebo água... vício da cidade, adquirido anos antes, na 1ª vez que pisou a calçada portuguesa... No entretanto, a corromper a sua imagem e ser, a cara de menina enche-se de rugas e manchas vermelhas, a saliva forma-se em grandes quantidades e subitamente, explode em 1001 palavrões que nem consigo pronunciar... seguidos, sem pausa para respirar e eu acredito que se existissem pratos perto dela, voariam em todas as direcções numa espécie de "salve-se quem puder"... E é isto que não gosto... a transformação do ser em algo tão comum... a corrupção das vidas, o deslargar das tradições, o corte com o passado... o efeito negro da cidade, na brancura da pureza campestre... E aí, acaba-se o dia, horas mais velha, anos mais mal passados, um cabelo branco a mais que salta no meio de tantos outros... amanhã... amanhã é dia de mais do mesmo.
Sem comentários:
Enviar um comentário