Dizem-me que Hoje salvei uma vida e nem por isso me sinto melhor. Pelo contrario...sinto-me horrivelmente chocada e angustiada. Agora sozinha pergunto-me se salvei mesmo ou apenas prolonguei a espera da morte.
Hoje cheguei a casa e mais do que nunca quis ter filhos. Não um, nem dois... Três, quatro, um rancho deles... Quis dar vida a quem ainda não nasceu e não propriamente a quem já se esqueceu do que é viver. A quem está cansado demais para estar de olhos abertos à espera do final dos dias. A quem tudo o que melhor podiam dar era o descanso das suas casas. Mas eu tirei-lhe isso. Salvei uma mulher demasiado cansada pelos anos que carrega mas milagrosamente viva, de uma casa que morria primeiro do que ela. Bastou uma chamada para a emergência para lhe abrirem a porta...eles vieram e levaram-na daqui. Longe da sua casa, do lixo que se acumulava em todo o lado mas não a corroía, do pó a reclamar mais de uma década de existência, do bolor que criava netos numa casa vazia de família. E é triste... Chegar aos noventas e não ter ninguém a quem ligar, ninguém para a ajudar, ver o que vi hoje dentro do seu canto e ficar marcada para o resto da vida, sem poder apagar de mim a imagem de uma cozinha preta do tempo, fechada a chave para não deixar passar bicho a outras divisões que serviam de cemitério a outros tantos mortos numa batalha que só ela, sem que eu entenda como, sobreviveu.
Dizem-me as mesmas pessoas, que é para o bem dela, que vai ter a dignidade que merece mas na minha cabeça guarda ainda os protestos e choro dela quando a levavam para a ambulância. Memórias de outros tempos mais limpos mas penosos da mesma forma. Ela não vai voltar aqui, um dia destes vem uma equipa fazer a limpeza porque é uma questão de saúde pública e ela ficará os restantes dias que lhe restam, num sítio estranho a ela. Longe dos seus animais de estimação que agora voam noutra direcção e a culpa será sempre minha.
Um dia destes quando a for visitar, vou pedir-lhe um perdão que ela não vai entender por algo que fiz por não ser capaz de ver alguém assim ao abandono. Vou-lhe pedir perdão por não a ter deixado morrer ali mas estar a matá-la na alma por estar longe daquilo que imundamente a fazia feliz.
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