sexta-feira, 2 de abril de 2010

A chave do meu mundo

Nesta casa centenária respira-se o cheiro da idade misturado com outros cheiros... Da comida que está ao fogão, do perfume dos que cá vivem, do cão que ladra no quintal, da madeira queimada na lareira, das tábuas do soalho... Nesta casa grande e centenária, foram muitos os que a encheram... outros tempos, outras glórias, outras gentes, outros cheiros, outras vozes... e agora... tão vazia... a mesma casa que me viu nascer e crescer, é a mesma que agora me expulsa do seu conforto... E eu não quero... mas sei que é inevitável... deixo nela um pedaço de mim, como o preço a pagar por anos a defender-me das ameaças do mundo, por lembranças boas e más que guardo sobre a forma de cicatrizes que carrego no corpo... mas tudo acaba um dia... e o meu, está a chegar... até lá, inspiro com mais força ainda os cheiros do tempo, as suas paredes, cada pormenor que já não se encontra em mais lado algum... sei de cor cada passo, cada recanto, cada barulho, deitando por terra as teorias de assombração de alguns que sofrem do coração... as passadas no sótão que nada mais são do que as andorinhas a construírem os seus ninhos, as tábuas que rangem sem que ninguém as pise, os quadros que se suicidam das paredes até ao chão sem que ninguém lhes toque, a meio da noite... nada me assusta nesta casa... pelo contrário, tudo me apaixona...
Olho o corredor grande... vejo-me pequena em corridas com o meu irmão... ao fundo ouvem-se as vozes da minha mãe que grita para termos cuidado e a do meu pai a dizer que nos vamos magoar... a imagem desaparece e ficam apenas as risadas de dois miúdos que já não correm assim... sorrio... lembro-me do tempo que gastava a imaginar como teria sido esta casa quando era nova em folha... quem cá vivia... quem cá nasceu e morreu... de quantas discussões ou alegrias, foram estas paredes, testemunhas... e ela permanece... em pé... até ao dia que um desses arquitectos sem visão, achar que é hora de ela cair... de no seu lugar por um bloco frio e cinzento que albergue mil e uma pessoas, que nunca se interessarão pela história. Mas até lá... ela está aqui... nela sente-se o cheiro a antigo, o peso da história que carrega, guarda no cimento do fundo do quintal, os nomes dos miúdos que fomos e não voltaremos a ser, mas acima de tudo, guarda as memórias que ninguém conseguirá apagar.

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